sexta-feira, abril 28, 2006

Argentina, PATAGÓNIA - El Calafate, Ushuaia - 20 a 23 de Março 2006







(Clube Andino de El Calafate)
Dia 20 nasceu abençoado pelo astro rei, com toda a sua luminosidade. Parabéns ao Edu, no outro hemisfério. (Mestre parabéns!!!!!!)
Logo pela manhã o Marcelo faz “huevos revueltos” para o pequeno-almoço e a Fanny está com “cara de horto” porque provavelmente discutiram. O “Tano” saiu a comprar roupa, diz o Marcelo, sorrindo como se nada fosse.


Bebemos o café lá fora ao sol, virados para o lago. A Fanny tricotava, como hobbie e calmante, a Flu corria atrás dos novelos de lã – o que invertia o efeito calmante do tricô – o Fred fumava o primeiro cigarro da manhã, o Paolo, com um par de calças novo, tirava fotos ao lago e eu aquecia os ossos que congelaram durante a noite. O Marcelo sorria. Estendera o dedo indicador apontado ao céu e depois de uns segundos cruzara os braços e começara sorrir. Por fim, revelou: Vamos voar.
Depois da desilusão na Península de Valdez não quis acreditar que poderia voar, mas o meu coração pulava às escondidas e desejava com toda a sua força que o vento soprasse e me levasse a conhecer o mundo dos olhos de um condor.
O Mariano subiu de mota com os parapentes. Paolo, Marcelo, Fanny, Fred, Flu e eu caminhámos durante meia hora, monte acima, e chegados ao topo recuperámos o fôlego sob uma vista privilegiada (uma verdadeira via sacra meus amigos!)
Ao fundo, as casas de El Calafate eram do tamanho de formigas, mas o Lago Argentino permanecia imenso e azul, com toda a magia inquebrável das montanhas cobertas de neve que emergem por detrás. A Kombi e a Bambi ficavam pequeninas, estacionadas na base da montanha.


O vento soprou!
O Marcelo abriu o parapente, a Fanny explicou-me que só tinha de puxar o assento para baixo assim que levantássemos e de repente senti um esticão brusco que nos levantou do chão. Corre, gritaram! Corremos para lá do abismo e contra a lei da gravidade, fomos sugados uns 30 metros para cima! A partir daí entramos numa dimensão diferente.

Éramos só nós e um mundo diverso aos nossos pés! Voar é suave e tudo é bonito visto do céu, por isso os pássaros cantam! Por isso o falcão que nos seguia parecia serenamente feliz. (Salvo erro, e se os meus ouvidos não me enganam, o dito falcão assobiava uma musica das Doce, tamanha era a alegria que lhe ia no espírito!)


Voámos durante meia hora, os dois em silêncio, fora uns “qui lindo” que deixei escapar, nada de mais, tendo em conta que se estivesse sozinha teria começado a cantar, “por supuesto”. Antes de aterrarmos – em grande estilo, palmas para o piloto – o Marcelo apontou-me o pico do Fitz Roy e, virando para o outro lado, as montanhas do Chile atrás da face argentina da cordilheira.


(FitzRoy)
Vimos o Mariano “descolgar”, depois o Tano. O Fred desceu de mota e a Fanny e a Flu desceram a pé, por motivos de falha de comunicação, uma vez que nós aterráramos uns 500 metros abaixo de onde eles estavam (A mota era uma XR 600, a estrada de terra batida a descer a pique… escusado será dizer que me ia matando umas dez vezes!) Quando percebemos que nem o Fred nem a Fanny vinham ter connosco para voarem com o Marcelo, levantámos voo novamente, e eu fiquei tão feliz que nem a cara de amuada da Fanny “hoje-não-voei-e-tu-voaste-duas-vezes” me desanimou. O Fredinho, que inicialmente nem se mostrara muito interessado em voar, ficou naturalmente cheio de pena e cheio de vontade depois da amostra. Quem sabe uma próxima vez… desejei.
Saímos de El Calafate em direcção à Isla da Tierra del Fuego, com paragem em Rio Gallegos, onde tratámos da papelada da Flu, necessária para passarmos a fronteira do Chile.
Em terras do Chile, fizemos não mais que duas centenas de quilómetros, atravessámos o estreito de Magalhães numa balsa que além de nós transportava duas dúzias de ovelhas que aterrorizavam a mariquinhas da Flu e em menos de três horas reentrámos na Argentina, em S. Sebastian.
A estrada fez-se sinuosa uns 100km antes de Ushuaia. Subimos e descemos montanhas, contornámos lagos, entrámos e saímos de vales onde as árvores desnudas parecem fantasmas dos Ents, as treebeards do Senhor dos Anéis. O frio crescia quanto mais próximos estávamos da cidade austral (por esta altura já deveria ir praí com um metro e oitenta ou coisa que o valha!)


Chegámos sob a luz fraca do sol já escondido atrás das montanhas. Nuvens de tonalidade rosa enfeitavam o céu acima da cidade que vira costas à base da cordilheira para se entregar ao Canal Beagle, esse pedaço de mar violento, que em outros tempos destruiu tantas embarcações de tão ousados descobridores (agora não me ocorre um que seja mas foram muitos e ousados!) Do outro lado do canal vêem-se as ilhas Chilenas, entre as quais a Isla Navarino que tem apenas um mini “pueblo” que pertence a um porto militar chileno, chamado Puerto Williams.
Ficámos dois dias num Hostal favorecido pela sua situação na encosta, com vista sobre os telhados da cidade, os barcos no canal, as ilhas montanhosas e geladas do Chile e um arco-íris perfeito que aparece de vez em quando (Tem graça, porque o que mais me impressionou no Hostal foi o facto de ter uma casa de banho lindíssima, um aquecimento deslumbrante e uma cama magnifica!) Foi esse o cenário do nosso primeiro pequeno-almoço em Ushuaia, Tierra del Fuego.














Glossário
“Tano” – alcunha que os argentinos dão aos italianos e que passou a ser também a alcunha do Paolo; (não confundir com “Cano”, que é outra coisa bem diferente)
“cara de horto” – (perdoem-me a expressão) cara de cu;
“por supuesto” – obviamente;
“descolgar” – descolar; levantar voo;
“pueblo” – povoação; aldeia;

(PS: tenho-me contido de fazer comentários sobre estes glossários mas já não resisto: Se houver alguém que, realmente, não faça a mais pequena ideia do que significam estas palavras e necessitem da preciosa tradução da inezinha então sugiro que peçam rapidamente um exame ao cérebro porque alguma coisa deve estar terrivelmente mal!)

quinta-feira, abril 27, 2006

Argentina, PATAGÓNIA - Puerto Madryn a El Calafate - 15 a 19 de Março 2006

(um fim de dia Patagónico)

(fotografando o nada e o tudo - a imensidão da Patagónia)



Puerto Madryn é uma cidade banhada pelas águas geladas do Atlântico, à latitude quarenta e picos Sul. O dia estava solarengo e a sorte do nosso lado. Encontrámos um mecânico especialista em kombis, um amor de senhor que nos pôs a moral em cima, com uma kombi a andar qual Porche Cheyenne. Enquanto esperámos o concerto, passeámos pela marginal da cidade, almoçámos numa esplanada que nos prendeu até meio da tarde e aproveitámos para pôr os e-mails em dia através da internet alheia.



A 5Km de nós, saberíamos mais tarde, um italiano e dois argentinos desfrutavam o dia de sol voando de parapente sobre uns “acantillados” frente ao mar.


Estacionámos frente às vivendas da zona rica da cidade, e adormecemos junto ao mar.
Saídos de Puerto Madryn, um dia depois do planeado, “empeçamos” a nossa viagem rumo a Ushuaia, continuando pela desabitada “ruta” 3, provavelmente a estrada mais recta do mundo.
A noite já ia alta quando parámos, próximos de Comodoro Ribadavia, num posto de gasolina com duche quente e gratuito para clientes. Confesso que já estávamos a precisar de um bom banho, pois já dormíamos um em cada ponta da kombi! (então era por isso que a inezinha me evitava e sempre que me dirigia a palavra o fazia com uma mola no nariz.) Depois de umas horinhas de sono e do banho revigorante, arrancámos para a cidade.
Abastecemos no supermercado, comemos umas sandes à beira mar, demos meia dúzia de voltas com a kombi à procura de net e não encontrando seguimos viagem.
Próxima paragem foi em Puerto San Julian, depois de o Fred me proibir de fazer um desvio de 100Km para fora da ruta 3 para irmos à maior colónia de pinguins da América do Sul! (200 km para ver pássaros que não voam pareceu-me demais. Prometi que quando chegássemos a Lisboa passava uma tarde com ela no Oceanário) Já com os Bosques Petrificados fora mais subtil, pois ia ele ao volante e logrando da minha distracção, quando fui a ver a que distância estaríamos dos ditos Bosques, ele já passara o desvio 50km atrás. (mais para a frente vão ver no que dá aceder aos caprichos da dra e dos seus bosques petrificados… mas isso é mais tarde!)
Em Puerto San Julian fizemos uma alteração de planos. Em vez de irmos directos ao sul, mudaríamos de direcção para oeste, de forma a chegar o mais depressa possível ao Glaciar Perito Moreno, que se encontrava em rompimento, um fenómeno raro e que só duraria mais dois ou três dias. Lembrámo-nos dos nossos mais recentes amigos e ficámos com pena de nos desviarmos da sua rota, mas o Glaciar chamava por nós. (“Vamos ao Glaciar agora porque eu quero”, mais nada, foi assim que decidimos ir ver o Perito Moreno antecipadamente.)

(mais 200km de nada...)
Chegados a El Calafate, sobreviventes a 200km de terra e mais nada, fomos apresentados ao Lago Argentina, uma mancha de água azul-turquesa hipnotizante, rematado pelas montanhas do Parque Nacional dos Glaciares, pelo Fitzroy e outros picos cobertos de neve.

El Calafate é uma vila que hoje em dia vive dos turistas que o Glaciar Perito Moreno atrai. Como todas as vilas pequenas, tem uma rua principal onde estão quase todos os restaurantes e lojas e foi aí mesmo que decidimos jantar. Cordeiro patagónico, uma especialidade da região, tão delicioso que o nosso personagem favorito, conhecido por ser de extremos, faria deste menu a sua escolha para os jantares das seguintes duas semanas… (viva as hipérboles!)
Ao sairmos do restaurante o reencontro inesperado! A Bambi estava estacionada do outro lado da rua. Grandiosa, como sempre, e com vários mirones ao seu redor. Os nossos amigos tiveram um contratempo na entrada do Chile e decidiram, como nós, adiar a ida a Ushuaia e vir para El Calafate! Para festejarmos a coincidência fomos para casa do Mariano, um parapentista amigo do Marcelo, e entre cervejas e gelados planeámos os dias que se seguiam.


O dia acordou esplendoroso e sentia-se na brisa gelada o sussurro do Glaciar Perito Moreno. Bambi e Kombi puseram rodas à estrada e a nossa curiosidade crescia com as curvas e contra curvas da estrada de terra que serpenteia a costa do Lago Argentino. Parámos várias vezes para fotografar. As cores da paisagem são deslumbrantes e nós íamos mergulhados no contraste da água do lago turquesa com o vermelho da terra e na neve branca das montanhas que tocam o azul limpo do céu, iluminadas pela força do sol.


Já considerávamos bem gastos os 30 pesos da entrada no Parque Nacional dos Glaciares, quando de repente, chegando ao cimo de uma subida, vimos pela primeira vez o Glaciar. Uma parede de gelo, sólida e gigante, pousara no Lago Argentino como uma barragem majestosa e celestial. Um lençol de gelo branco, que escorrera por 5km desde as montanhas muitos mil anos antes, solidificou nessa forma imponente que contemplávamos, boquiabertos mas em silêncio, como se com medo que o som pudesse desmoronar os 70metros de altura sobre o lago.


Seguimos caminho sem tirar os olhos do Glaciar. A estrada termina mesmo lá à beira, num parque de estacionamento assustadoramente repleto. Autocarros e carros de turistas vindos de todo o mundo para ver o rompimento do glaciar, entre eles um famoso jornalista português que escreveria um artigo sobre o dito cujo fenómeno, a sair na revista Sábado brevemente, o qual aconselho a todos para uma leitura mais resumida, menos pessoal e mais bem escrita. (Mais resumida com certeza, menos pessoal também é certo, porque se me pusesse a descrever os meus problemas urinários era logo despedido, agora mais bem escrita é que já tenho as minhas dúvidas que a dra está uma espadachim da pena capaz de fazer Cervantes tremer como varas verdes.)


Estava especada há uns bons 15 minutos, a 100 metros daquela parede branca rasgada por enormes fendas azul-claro em toda a sua extensão. A qualquer momento poderia soltar-se um pedaço e, de câmara em punho, eu não iria perder o espectáculo. De repente o Glaciar rangeu num estrondoso gemido que termina como o som de um trovão, como que a chorar a pequena parte que dele caiu logo em seguida sobre o lago (Eu não disse! Esta mulher enganou-se na carreira, devia ser poetisa a tempo inteiro!!!) Formou-se uma onda gigante com a queda do gelo e minutos depois o lago recuperou a sua tranquilidade. Só aí voltei a mim, ainda meia pasmada e sorriso estampado na cara, até me aperceber que com a emoção mantivera a câmara desligada! Insultei-me a mim própria e teria maldito o meu nome nos próximos meses, não fosse o glaciar brindar-nos com mais uns quantos dos seus gritos deploráveis e dar-me essas segundas e terceiras oportunidades de gravar os acontecimentos.


Presenteados pela Natureza, todos estávamos contentes no final do dia, reunidos à volta duma mesa a ver as fotos do glaciar, enquanto esperávamos o “giso de lentillas” do Marcelo. O Marcelo tem 38 anos e há 10 que é instrutor de parapente, vivendo de voar por todo o mundo (não é apenas disso que o jovem faz a vida, mas cheira-me que a ingénua da inezinha não acredita que o Marcelo era dealer!) O Pablo terá uns 45 anos que mantém em segredo e está na Argentina há mais de um ano, com algumas passagens nas fronteiras com o Chile e o Uruguai, uma vez que o visto de turista só permite três meses consecutivos por estadia. Conheceram-se há um ano em Mar del Plata e pela afinidade do parapente e nenhuma outra, puseram-se à estrada, mais a pobre da Fanny que os ature. A Fanny é uma miúda de 33 anos com uma história anterior atribulada, 10 irmãos, trabalhadora desde os 14, um casamento de 4 anos e uma reviravolta na sua pacata vida de empregada doméstica pobre do Mar del Plata, para passar a ser uma dona de casa radical, que voa de parapente e viaja numa Bambi, mas pobre na mesma e com o senão de aturar as luas das duas criancinhas mimadas que a financiam! O Paolo é divertido como um italiano, civilizado e obsessivo como um suíço e casmurro como um turco. Esta última qualidade leva-me a autocorrigir-me, sendo que é mais uma afinidade entre o Paolo e o Marcelo, o qual, agora sim, sem mais nada em comum, é um tipo desleixado, impreciso como os Argentinos, vigarista à tuga e bon vivan à brasileiro. Fala português, capacidade que adquiriu em Fortaleza, onde viveu uma temporada. O Paolo diz que português parece russo e considera-se incapaz de alguma vez entender essa língua. O Marcelo prefere carne, o Paolo mil vezes peixe. O Marcelo acelera, o Paolo trava. O Paolo canta, gravou um cd no passado, o Marcelo desencanta, graciosamente desafinado. O Paolo abre a porta às senhoras, o Marcelo vai de mãos a abanar enquanto a Fanny carrega 8kg de mochila. O Marcelo muda o pneu furado, o Paolo liga para o reboque. Enfim, já chega.

Estávamos junto ao Lago Argentino, numa casa que de madeira aquecida por uma salamandra arcaica. Emprestara-a o Mariano ao casal amigo, um clube desportivo onde aluga patins de gelo durante o Inverno, quando o lago Argentino fica gelado, e onde está o rocódromo dos escaladores de El Calafate, que fez as nossas delícias nos tempos mortos! A Flu também adorou a casa, sobretudo os colchões que servem para amparar as quedas durante os treinos de escalada e que para ela eram alvo de destruição e palco de cambalhotas. Foi também nesses colchões que a pobrezita se descobriu alérgica ao pó, surpreendida por uma sucessão de espirros, tal e qual a sua mamã, num verdadeiro ataque de rinite alérgica (Foi também no dito colchão que decidiu fazer um xixi do tamanho do Lago Argentino, mas isso não é para contar!)


Jantámos o tal guisado, deliciosamente puxado pela pimenta, depois cantámos acompanhados pelos milhares de cds de karaoke do Paolo (não imaginam o pesadelo que é ter um italiano de meia idade a cantar Karaokes aos altos berros com aquele sotaque tipicamente napolitano. Estive à beira de lhe pendurar uma corda à volta do pescoço e atirá-lo ao lago em frente) e por fim fomos dormir.

Marcelo e Fanny acampados dentro de casa, Paolo na Bambi, munida de “calefacion” e nós na kombosa (Não chames “Kombosa” à Kombi linda ou vais a pé até ao Equador!!!) gelada, arca frigorífica mal regulada que quase congelámos debaixo das roupas e dos sacos-cama, quase sentíamos o vento que cortava lá fora, e dormimos tão mal, que só um dia em cheio como o que se seguiria poderia compensar tal desventura.



Glossário
“acantillado” – falésia;
“empeçamos” – começámos;
“ruta” – estrada;
“calefacion” – aquecimento;

Argentina, PATAGÓNIA - Bahia Blanca, Península de Valdez - 13 a 15 de Março 2006


Desde os elefantes marinhos aos glaciares e aos pinguins, passando pelas províncias de Rio Negro, Chubut, Santa Cruz, e Tierra del Fuego, a Patagónia conquistou o fundo do meu coração. Mas se fosse assim tão simples de contar, a história não seria exacta. Como falar-vos desse lugar?
A patagónia é incoerente. Inóspita mas maravilhosa. Monótona e surpreendente. Desde nos questionarmos “porque é que estamos aqui” a gritarmos de deslumbramento como uma criança pela primeira vez numa montanha russa, a Patagónia provocou em nós todos os tipos de reacções, mantendo escondidos os seus encantamentos durante milhares de quilómetros de deserto, apenas vento, pó e mais pó, e só quando já a odiávamos, só quando já lhe mudáramos o nome para “Pógonia” e seguíamos apenas movidos a orgulho, eis que desencanta o “Às” de trunfo, um cheque mate sem cheque prévio. (O Kasparov deve estar com os olhos em bico com uma metáfora tão disparatada)
A chegada à Península da Valdez foi um desses momentos de quase explodir de desespero. Desde Buenos Aires paráramos em duas terriolas – Bahia Blanca e P.Luro – porque a kombi avariara. Ambos os mecânicos arranjaram o problema mas deram-nos outro em troca, de modo que a saúde da kombi também não jogava a favor da nossa boa disposição. A península era a esperança de uma mudança de cenário mas a estrada parecia mostrar-se até ao infinito numa recta incansável de terra, rodeada de estepe curvada pelo vento, até que um oceano azul-escuro vivo se nos apresentou, como primeira cor alternativa ao castanho cor-de-terra patagónico.
Saímos do carro, ainda sem termos tido tempo de nos apercebermos se estávamos contentes por ver o mar, e fomos enfeitiçados, como se por um canto de sereias, mas ao invés, um ruído deselegante, mistura de gemido com mugido e bramido, que nos atraiu para a praia. Foi assim que conheci os elefantes marinhos! Estendidos ao longo da costa, gigantes que pesam toneladas, caras feias mas inofensivas, encavalitados uns nos outros a conversar na praia num fim de tarde que nunca esquecerei. (O que eu nunca mais vou esquecer é o odor fedorento daqueles bicharocos. Parecia que estava a admirar elefantes marinhos na praia da Cruz Quebrada.)

Na Patagónia desapareceram as árvores, os montes, os vales, as curvas e as contracurvas, mas sugiram os animais! Lamas, ovelhas, avestruzes, lebres, tatus e raposas acompanharam-nos ao longo das estradas. Todos argentinos e como tal diferentes. As ovelhas são tão fofas que parecem nuvens com patas. À noite são pardas tal como os gatos e suicidas tal como as corujas. Felizmente nenhuma se saiu bem no seu intento de se espetar contra a nossa kombinha que ainda assim sentiu o sabor da adrenalina derrapando a 80Km/h numa estrada de terra, depois de uma guinada que salvou a louca da ovelha (As ovelhas safaram-se, graças a uma condução eximia da minha pessoa. Já as corujas… certa noite, possuída por um espírito maligno qualquer, a inezinha decidiu dedicar-se ao extermínio destas simpáticas aves patagónicas. Em menos de três horas, enquanto eu dormia tranquilamente, abateu duas deixando-as pregadas no asfalto qual calquito. Uma violência!). Isto, ainda na península de Valdez, dez da noite, escuro como breu e nós no meio duma península deserta de 50000km2, a caminho da única vila, o único lugar onde é permitido parar para dormir. Nós e uma Iveco Turbodaily verde escura, uma carrinha monstruosa 4x4 chamada Bambi, matrícula de Roma, propriedade de Paolo Zanaboni e com ele “una parella” de argentinos de Mar del Plata, Marcelo e Fanny, personagens que serão exploradas mais adiante.
(Paolo e eu) (Marcelo, Fred e eu)(Bambi e Kombi)
Metera conversa com eles à chegada a Valdez, sem imaginar que poderíamos ter a sua companhia nos próximos 3 mil quilómetros de aventuras, já que todos íamos para Ushuaia. Mas para já ainda só passáramos uma tarde juntos e só queríamos chegar a Puerto Pirâmide, para jantar e descansar. Jantar animado pela exaltação tipicamente italiana e pela possibilidade de o Marcelo me levar a voar de parapente no dia seguinte, se assim o vento permitisse.
Dormimos junto à praia, duas carrinhas e uma tenda, e eu mal preguei olho, não tanto pelo frio como pela emoção de poder voar! Às seis e meia levantei-me e o dia prometia estar bonito, com um céu estupendo pela alvorada. Às dez, quando o último se levantava, chovia a potes! Assim se desmanchava o meu sonho de voar, desfeito em água de chuva que caía sobre os meus olhos em forma de desilusão.
Despedimo-nos deles, quiçá nos encontraremos pelo caminho, dissemos, senão, na cidade mais austral do mundo. (“quiçá” é realmente uma palavra bem bonita!)







Glossário
“parella” – casal;

segunda-feira, abril 17, 2006

ARGENTINA, Buenos Aires, 7 a 12 de Março de 2006


Atenção! Procuro substituto para o meu namorado.
Terá que ser do sexo masculino e maior de idade, de preferência maior que 26 anos.
Terá que ter as qualidades do meu futuro ex, isto é, ser bem aparentado, ter graça, ser culto, ter bom gosto para música, gostar de escalar e de preferência de vários desportos, adorar o ar livre e viajar, por exemplo de kombi pelo mundo, entre outros…!
Além disso terá que ter algumas das que lhe faltam: tem que conseguir passar da meia-noite sem começar a pestanejar de sono! Gostar de balada! Alinhar nas minhas propostas de ir ouvir uma rockalhada a um barzinho qualquer e não vir cá com desculpas que já está velho para estas coisas, ou com condicionalismos do género “se o bar estiver vazio”, ou, “se for só 5 minutos”.
Uns copos em Buenos Aires!!? Quem resiste a isto, meu senhores? Chama-se Frederico Kuhl de Oliveira e eu estou decidida a arruinar-lhe a reputação, expondo a sua caretice ao público, muito embora seja ele o jornalista.
Aguentei vários “nãos” no Rio de Janeiro, também vários na Bahia e depois em São Paulo. Em Florianópolis bastou um “não” que o segundo já era escandaloso demais, mas ele cedeu, que motivos mais altos se alevantaram. Rio Grande do Sul nem tentei, pois íamos na missão de fugir do Carnaval, porque sua excelência partiu do princípio que ia odiar o Carnaval. Em pleno Brasil! Noooooooooossa.
O Uruguai passou por nós a correr e não houve grandes oportunidades para saídas à noite, mesmo assim, a única que houve, foi reprovada em silêncio, com um simples abanar da cabeça. E depois teve o desplante de ficar a ver o Benfica – Estrela da Amadora até às 4h da manhã!
Agora Buenos Aires foi o fim da picada. Farta de ter um montão de energia para gastar e não ser correspondida, de passar por cidades que acordam à noite e não poder conhecê-las despertas, ou então conhecê-las sozinha e depois ter de apresentar um relato completo de quem conheci e ainda para mais ter de ouvir que sou uma galdéria, decidi tomar medidas drásticas. Quero um substituto.
Ah! Já agora, um substituto com cartão de crédito incluído e que não o perca por favor. Que isto de ser a mulher a sustentar o homem não me parece bem! (todos os candidatos podem escrever para fredkuhl@hotmail.com para mais esclarecimentos sobre a futura noiva porque é bom que saibam no que se estão a meter. Já diz o povo e com razão, quem avisa amigo é! E se o rol de queixas da jovem é largo, por favor passem-me um rolo de papel higiénico para começar a enumerar algumas das singularidades da nossa dra.)


Saídos do barco, ninguém nos parou, revistou, nem nada! Entrámos na Argentina como quem passa de Portugal para Espanha e fomos directos a casa da Carolina – a “portenha” que ficara nossa amiga na Chapada Diamantina, Brasil. As indicações que nos dera por e-mail levaram-nos direitinho à sua porta, numa rua tranquila de Palermo, uma das zonas ricas da cidade.
Fizemos do seu T1 a nossa base. Dormíamos na kombi, mas tomávamos o pequeno-almoço num 4º andar com vista desafogada sobre a cidade! O Fred aproveitou o tecto para passar dois dias a trabalhar usando a net do vizinho, pois mais uma vez se confirmou que na América do Sul ainda não descobriram o uso das passwords. (confesso que também aproveitei para pôr em dia a Liga dos Campeões na ESPN e Fox Sports.) Eu entretive-me a passear a pé e de “coletivo” nas grandes avenidas da capital cosmopolita, enchendo os olhos nas montras das lojas, cafés antigos e restaurantes estilosos e no segundo dia já me atrevi a ir de Kombi, lado a lado com os portenhos de costela italiana ao volante. (que devem ter ficado aterrorizados ao aperceberem-se que existe alguém mais demente ao volante do que eles!!!)

(kombi à porta do Café Tortoni)
No terceiro dia fomos os dois fazer o circuito turístico dos monumentos, assistimos a uma manifestação na Praça 25 de Mayo, lanchámos no Café Tortoni – um dos lugares mais tradicionais da cidade, palco de espectáculos de Tango – e à noite jantámos num Sushi. Seguiu-se o momento da discórdia. Eu queria parar num barzinho ou dois, já nem digo ir dançar um Tango apaixonante, que tão pouco é um estilo de dança que me agrade por aí além, mas o menino queria ir dormir e não houve súplica que o convencesse. Ameaçado de ser trocado, cedeu a uns dez minutos num bar vazio, ao lado de casa e que só começaria a badalar 1 hora depois. Acabada a Coca-Cola trocou-me pelo saco-cama! (um saco cama de qualidade, é preciso dizer!)


Buenos Aires é uma cidade sul-americana mas com um brilho nitidamente europeu.
Desde os parques e os jardins de Palermo, às cores vivas e o sotaque italiano da Boca, passando pelo aroma clássico de San Telmo, o distinto travo europeu de Recoleta e o moderno Puerto Madero, a nossa Kombi correu Buenos Aires de uma ponta à outra, Córdoba, Corrientes, 9 de Julho, Libertador, todas as grandes avenidas e no final eu sentia-me uma perita, quer como condutora a solo, quer como co-piloto, planta da cidade qual palma da mão.


Levámos a Carolina jantar fora e ela escolheu um restaurante de comida típica argentina, pelo que comemos uma “parrillada” de carne 5 estrelas acompanhada de um vinho tinto tão bom que parecia português! Saímos de pança cheia, mas tal como o meu sábio paizinho me ensinou, o estômago tem um compartimento reservado para a sobremesa e assim ainda pude saborear o melhor gelado da cidade (aqui é importante salientar que o compartimento para sobremesa de que a cara dra se refere tem o diâmetro de uma piscina olímpica!) Uma fila de pessoas saía porta fora, à espera de serem atendidos, e ainda para mais era uma noite fria. “Estes portenhos são doidos!”, cito. Mas em Roma sê romano, portanto há que esperar e, por fim, dar razão à fama da geladaria. (Meu rico Santini!)
Entretanto a Flu fez 2 meses em Buenos Aires mas não estava muito disposta a festas, porque na véspera do seu “cumpleanos” os seus donos maldosos levaram-na ao veterinário, que lhe deu uma injecção no rabiosque. Para se vingar fez uns quantos xixis no soalho da casa da Carolina, que esteve prestes a arrepender-se de nos dar guarida.
No último dia fomos conhecer o Tigre, a Veneza da Argentina, segundo a inocente Carolina, que obviamente nunca viu Veneza em toda a sua vida. Mas é bonito, sim senhor, um vilarejo tranquilo e organizado, casinhas de estilo nórdico, um ou dois canais no meio do vilarejo e quando muito um travo muito subtil a Amesterdão, nunca Veneza. (Que simpática! A mim pareceu-me mais uma versão de Aveiro sem os ovos moles.)
Depois, um adeus fugidio e mais uma amiga ficou para trás.


Glossário
“portenho” – natural de Buenos Aires;
“coletivo” – autocarro;
“parrilla” - comida típica argentina, que consiste em vários tipos de carnes (lomo, bife de chouriço, morcilla, etc) assadas na brasa, servidas num tabuleiro de metal quente.
“cumpleanos” – aniversário;
(PS: é com muita pena que confesso que verdadeiras pérolas da língua castelhana se têm perdido por falta de profissionalismo da minha parte. O que é certo é que a inezinha consegue inventar palavras em portinhol jamais prenunciadas ou sequer imaginadas por qualquer ser vivo. Prometo, futuramente, estar mais atento para vos brindar com verdadeiros atentados à língua de Cervantes)

sábado, abril 15, 2006

URUGUAI (continuação), 28Fev a 6Março de 2006

(Fred e Flu, Rambla, Montevideo)

As estradas serpenteiam montes e vales num dos “departamentos” geograficamente mais acidentados do Uruguai – Lavalleja. Compreenda-se que os montes, no contexto uruguaiano, são pouco mais que uma modesta colina, sendo que a maior montanha do país – Cerro Catedral – tem pouco mais de 500m de altitude.
Minas é a capital da província de Lavalleja, e é uma cidadezita pequena como o são todas no Uruguai à excepção de Montevideo. O Uruguai tem quase o dobro da área de Portugal e 3,2 milhões de habitantes dos quais 1,2 vivem na capital. Assim consegue ter-se uma ideia mais clara da tranquilidade deste país, onde o espaço abunda para a gente escassa.
Estávamos em Minas, na praça principal, munidos de 3500 pesos uruguaios que o Fred levantara em Rocha, onde aproveitara para deixar o seu único cartão Multibanco! Perante tamanha riqueza – que tantos dígitos enganam qualquer um – entrámos no restaurante central, a fim de provarmos a famosa carne do Uruguai! A carne tem a fama e nós tivemos o proveito, o melhor bife “de lomo” que comemos desde que temos dentes. Depois de um passeio pelo centro, uma vista de olhos no artesanato regional e as informações turísticas acerca de Lavalleja, estacionámos a Kombi numa praceta e “boa noite senhor polícia que está aí à porta do quartel, a 20m de nós”.
No dia seguinte acordei aflita para fazer chichi. À primeira vista isto pode não ter relevância para a história, mas parece-me importante que estejam a par não só dos prós como dos contras de andar a viajar pelo mundo numa Kombi. Há coisas triviais que se forem menosprezadas poderão ter consequências desastrosas como quase ocorreu nessa manhã. A verdade é que parámos numa praceta onde não havia um café, uma padaria ou qualquer lugar aberto ao público onde houvesse uma casa de banho para que pudesse aliviar a minha bexiga, usualmente cheia pela manhã. Sendo que o jardim da praceta estava fora de questão, corremos dois ou três quarteirões à procura de um café e eu quase sofri a humilhação de o fazer pelas pernas abaixo. Mais a mais a dor da bexiga a distender é tão horrível que quase morri! Finalmente, salva por uma padaria de esquina, de onde sairia um aroma a pão quente que estava incapaz de sentir pela aflição. Moral da história: para dormir, estacionar no meio do mato ou em frente de um café. (isto é uma visão feminina dos contras da Kombi, porque, em bom da verdade, eu assim que acordo procuro o arbusto, árvore, poste ou, em último caso, o pneu do carro mais próximo. Acho que nisso a Flu saiu a mim!)
Passeámos toda a manhã pela serra verdejante que torneia o Salto do Penitente, uma queda de água gelada entre escarpas. A Flu correu alegremente monte acima e monte abaixo até não ter mais fôlego e descemos com ela até ao rio, que atravessou corajosamente, pedra sobre pedra, molhando as patinhas que tremiam como varas verdes.
Passámos pela Arequita, uma montanha cuja face norte lamentámos não estar equipada pois tem uma falésia cheia de potencial, e antes de irmos embora enchemos a termus de café, filtrado sob a paisagem serrana, ao som de Leonard Cohen.
Kombi afinada, estradas alcatroadas, 1 litro de café e 4 gigabytes de música, num abrir e fechar de olhos percorrêramos toda a costa das províncias Maldonado, Canelones e Montevideo.
Punta del Este não foi o pesadelo que imagináramos, pelo contrário, apresentou-se-nos solarenga e silenciosa, que a época alta terminara deixando as praias ao natural, e como se a um sumo de frutas fosse tirado o açúcar, só faltava o letreiro: 0% turistas! O mar é azul-escuro e rebenta nas plataformas rochosas aonde se estendem os lobos-marinhos em dias privilegiados. As praias são pequenas e na memória ficam uns dedos gigantes, 4 metros de altura que emergem da terra esculpidos em areia. As ruas são limpas e tranquilas, e se as casas ostentam riqueza em sua maioria, não ferem por demais o resto do país, uma vez que não há uma tão escandalosa disparidade entre os extremos das classes sociais. Maior pontuação para Pedro, um velho argentino, que almoçava numa mesa de campismo à porta da sua linda kombi, equipada por si próprio para viajar pelo mundo!
Montevideo não nos convenceu. Faltou-lhe a poesia que compensa os defeitos das cidades grandes. Talvez se tivéssemos entrado na cidade pela avenida costeira em vez de chegarmos pelos subúrbios mal cheirosos, talvez assim, encontrássemos na harmonia entre a Rambla e o amplo Rio de La Plata a deixa para ficarmos uma temporada em Montevideo, e talvez então pudéssemos dizer que é uma capital interessante, qui çá bonita. Teríamos ido ver uma peça ao Teatro Municipal, teríamos passeado a Flu no Parque Rodó e feito um jogging na calçada da Rambla. Quem sabe, teríamos parado para entrar na Catedral Metropolitana quando a perpassámos. E talvez não nos estivéssemos a despedir da cidade sob aquele pôr-do-sol impressionante que iluminava o forte Espanhol pousado no alto do Cerro.
(Rambla - Fred e Flu)
Atravessámos o departamento de San José durante a noite e seguimos até Trinidad, a capital de Flores. Acordámos “temprano” para fazermos os 20km que faltavam para o empreendimento turístico de caça gerido por um português, a propósito do qual o Fred faria um artigo. A planície vasta e aberta, quase sem sinal de árvores ou arbustos, apenas capim baixo em abundância e alguns campos de girassóis, sugere uma tranquilidade tal, que o nosso jornalista, por mais perspicaz, jamais adivinharia as peripécias vindouras. Uma vez que sairá publicado o artigo escrito por um profissional, adianto pouco mais que os hight lights e os episódios censurados.
À boa maneira portuguesa, João Paulo não tardou a convidar-nos para almoçar e para nossa boa surpresa sentou-nos numa mesa com mais quatro portugueses. O Zé, o Joaquim, o Sr.Costa e o Sr.Silva, entre os 50 e os 70 anos, quatro amantes da caça que se reúnem no Uruguai anualmente pelo prazer da caça e da boa cozinha que a ela está associada, e para, juntando o útil ao agradável, tirarem férias das mulheres. Matámos saudades da mesa cheia de boa comida, de boa gente e da boa língua portuguesa, traiçoeira mas encantadora. A conversa chegou ao tema dos sotaques do norte e do sul de Portugal, e foi nesse contexto que um dos senhores afirmou empolgado que no norte ninguém se ofende com um “caralho”. Seguiu-se um silêncio sepulcral e depois as gargalhadas, menos do culpado que corou para o resto da refeição, pois estava uma senhora sentada à mesa e todos são da geração em que os homens são feios, porcos e maus entre homens, mas uns cavalheiros na presença de uma mulher. Uns pediam-me desculpas pelo comportamento do seu amigo, outros pediam-me que compreendesse o seu descuido, que estavam há tantos dias entre homens, e o mais cómico era que todos intercalavam as suas observações com um cerimonioso “Sra Dra”. No final estávamos convidados para passarmos os dias que quiséssemos instalados no conforto de uma casa de campo aquecida, num quarto resguardado do pampero, o vento frio e cortante que sopra violentamente desde as Pampas, as planícies argentinas.
Aceitámos o convite por duas noites e passámos três dias muito agradáveis na companhia dos portugueses e de dois irmãos cubanos, a mulher do João e o Juan, um personagem tão delicioso que merecia uma página só para ele. Infelizmente não é em nada relevante para a história e deixo apenas a referência a ele e a toda a sua generosidade e simpatia.
De manhã o repórter saiu para a caça à rola com o grupo, de câmara às costas em vez da caçadeira. Soubesse eu dos perigos da caça, teria ido despedir-me de lencinho branco na mão e coração angustiado. Ora o senhor Silva, aquele que mais rolas mata por hora, de tal forma viciado em disparar que já tem o ombro em ferida, decidiu variar no tipo de presa e abrir fogo ao jornalista. No final da manhã o meu amor apareceu-me todo furadinho: um chumbo abaixo do ângulo da mandíbula, um na face, na região malar, e outro naquele altinho que lhe ressai da careca. Diz o Sr. Silva, em sua defesa, que apontava para as rolas que voavam baixo, junto aos girassóis que camuflavam o Fred. Contam as testemunhas, que depois de levar a primeira chumbada, a vítima sacudia a cabeça, queixando-se de ter um pico dos girassóis na cabeça!
(Zé, na caça)

Para as meninas foram dias em cheio. A Flu aprendeu a ladrar, dormiu sozinha na kombi, descobriu que adora leite e que é uma seca ter diarreia! Eu vesti-me de doméstica e pus a kombi num brinco, vi filmes dobrados em castelhano, escrevi um pouco do romance, fitei a piscina, passeei pela pradaria e comi que nem um búfalo carnívoro em todas as refeições (comeu que nem uma manada de bufalos, foi mais isso).
(piscina do empreendimento turístico, na qual não entramos por motivos de ordem centígrada)
Despedimo-nos entre todos, jantares prometidos na volta a Portugal, massada de peixe à Fred com os coentros do Sr. Silva, que jurou tréguas ao cozinheiro.

Colónia del Sacramento, capital de Colónia, é património cultural da humanidade. Separada de Buenos Aires pelo Rio de la Plata, o rio mais largo do mundo, que em tempos passados também foi chamado Rio da Prata, a cidade foi palco de inúmeras batalhas entre Portugueses e Espanhóis e saltou das mãos de uns para os outros durante mais de um século, sendo hoje evidentes as influências de ambas as culturas, à medida que se percorre as ruas empedradas, por fim em paz.
Estacionámos na Plaza Mayor, uma praça larga e ironicamente sossegada já que noutra dimensão do tempo era uma zona usada para manobras militares. Hoje em dia está rodeada por quase todos os museus da cidade, incluindo o museu Principal e o museu Português, que estranhámos não serem o mesmo, e é não mais que uns banquinhos de jardim espalhados entre árvores e relvados para os residentes e os turistas, um local ideal para a Flu passear alegremente e fazer as suas necessidades durante a nossa estadia.
É uma vila catita, que conhecemos bastante bem para dentro dos restos das muralhas, passeando por entre as fachadas distintas das casinhas tipicamente portuguesas e das espanholas, pelo farol, as ruínas do forte, as ruazinhas em calçada e a avenida principal que desemboca sobre o panorama daquele mar doce que se estende a perder de vista, que varia de tonalidade ao longo do dia, entre o lamacento e o dourado, e no fim do dia o sol deita-se sobre Buenos Aires, de frente à cidade, e deixa um rastro cor de prata.
Apanhámos uma balsa e dissemos boa noite Colónia, adeus Uruguai.

(praça Mayor)
(Calle des Suspiros)

Duas horas depois as luzinhas de Buenos Aires cintilavam para nós. Para mim, que nunca fui a Nova Iorque, nem nenhuma cidade de arranha-céus, foi fascinante a aproximação à metrópole, como se estivesse dentro daquela imagem de Manhatan à noite, que aparece tantas vezes no início dos filmes… (parecia uma rural pela primeira vez na metrópole)



Glossário
“perra” – cadela (isto a inezinha aprendeu depois de passar vários dias a dizer: “esta es Flu, nostro cano!” E ficavam todos a olhar para ela sem perceber patavina.)
“departamento” – província
“temprano” – cedo