quinta-feira, abril 27, 2006

Argentina, PATAGÓNIA - Puerto Madryn a El Calafate - 15 a 19 de Março 2006

(um fim de dia Patagónico)

(fotografando o nada e o tudo - a imensidão da Patagónia)



Puerto Madryn é uma cidade banhada pelas águas geladas do Atlântico, à latitude quarenta e picos Sul. O dia estava solarengo e a sorte do nosso lado. Encontrámos um mecânico especialista em kombis, um amor de senhor que nos pôs a moral em cima, com uma kombi a andar qual Porche Cheyenne. Enquanto esperámos o concerto, passeámos pela marginal da cidade, almoçámos numa esplanada que nos prendeu até meio da tarde e aproveitámos para pôr os e-mails em dia através da internet alheia.



A 5Km de nós, saberíamos mais tarde, um italiano e dois argentinos desfrutavam o dia de sol voando de parapente sobre uns “acantillados” frente ao mar.


Estacionámos frente às vivendas da zona rica da cidade, e adormecemos junto ao mar.
Saídos de Puerto Madryn, um dia depois do planeado, “empeçamos” a nossa viagem rumo a Ushuaia, continuando pela desabitada “ruta” 3, provavelmente a estrada mais recta do mundo.
A noite já ia alta quando parámos, próximos de Comodoro Ribadavia, num posto de gasolina com duche quente e gratuito para clientes. Confesso que já estávamos a precisar de um bom banho, pois já dormíamos um em cada ponta da kombi! (então era por isso que a inezinha me evitava e sempre que me dirigia a palavra o fazia com uma mola no nariz.) Depois de umas horinhas de sono e do banho revigorante, arrancámos para a cidade.
Abastecemos no supermercado, comemos umas sandes à beira mar, demos meia dúzia de voltas com a kombi à procura de net e não encontrando seguimos viagem.
Próxima paragem foi em Puerto San Julian, depois de o Fred me proibir de fazer um desvio de 100Km para fora da ruta 3 para irmos à maior colónia de pinguins da América do Sul! (200 km para ver pássaros que não voam pareceu-me demais. Prometi que quando chegássemos a Lisboa passava uma tarde com ela no Oceanário) Já com os Bosques Petrificados fora mais subtil, pois ia ele ao volante e logrando da minha distracção, quando fui a ver a que distância estaríamos dos ditos Bosques, ele já passara o desvio 50km atrás. (mais para a frente vão ver no que dá aceder aos caprichos da dra e dos seus bosques petrificados… mas isso é mais tarde!)
Em Puerto San Julian fizemos uma alteração de planos. Em vez de irmos directos ao sul, mudaríamos de direcção para oeste, de forma a chegar o mais depressa possível ao Glaciar Perito Moreno, que se encontrava em rompimento, um fenómeno raro e que só duraria mais dois ou três dias. Lembrámo-nos dos nossos mais recentes amigos e ficámos com pena de nos desviarmos da sua rota, mas o Glaciar chamava por nós. (“Vamos ao Glaciar agora porque eu quero”, mais nada, foi assim que decidimos ir ver o Perito Moreno antecipadamente.)

(mais 200km de nada...)
Chegados a El Calafate, sobreviventes a 200km de terra e mais nada, fomos apresentados ao Lago Argentina, uma mancha de água azul-turquesa hipnotizante, rematado pelas montanhas do Parque Nacional dos Glaciares, pelo Fitzroy e outros picos cobertos de neve.

El Calafate é uma vila que hoje em dia vive dos turistas que o Glaciar Perito Moreno atrai. Como todas as vilas pequenas, tem uma rua principal onde estão quase todos os restaurantes e lojas e foi aí mesmo que decidimos jantar. Cordeiro patagónico, uma especialidade da região, tão delicioso que o nosso personagem favorito, conhecido por ser de extremos, faria deste menu a sua escolha para os jantares das seguintes duas semanas… (viva as hipérboles!)
Ao sairmos do restaurante o reencontro inesperado! A Bambi estava estacionada do outro lado da rua. Grandiosa, como sempre, e com vários mirones ao seu redor. Os nossos amigos tiveram um contratempo na entrada do Chile e decidiram, como nós, adiar a ida a Ushuaia e vir para El Calafate! Para festejarmos a coincidência fomos para casa do Mariano, um parapentista amigo do Marcelo, e entre cervejas e gelados planeámos os dias que se seguiam.


O dia acordou esplendoroso e sentia-se na brisa gelada o sussurro do Glaciar Perito Moreno. Bambi e Kombi puseram rodas à estrada e a nossa curiosidade crescia com as curvas e contra curvas da estrada de terra que serpenteia a costa do Lago Argentino. Parámos várias vezes para fotografar. As cores da paisagem são deslumbrantes e nós íamos mergulhados no contraste da água do lago turquesa com o vermelho da terra e na neve branca das montanhas que tocam o azul limpo do céu, iluminadas pela força do sol.


Já considerávamos bem gastos os 30 pesos da entrada no Parque Nacional dos Glaciares, quando de repente, chegando ao cimo de uma subida, vimos pela primeira vez o Glaciar. Uma parede de gelo, sólida e gigante, pousara no Lago Argentino como uma barragem majestosa e celestial. Um lençol de gelo branco, que escorrera por 5km desde as montanhas muitos mil anos antes, solidificou nessa forma imponente que contemplávamos, boquiabertos mas em silêncio, como se com medo que o som pudesse desmoronar os 70metros de altura sobre o lago.


Seguimos caminho sem tirar os olhos do Glaciar. A estrada termina mesmo lá à beira, num parque de estacionamento assustadoramente repleto. Autocarros e carros de turistas vindos de todo o mundo para ver o rompimento do glaciar, entre eles um famoso jornalista português que escreveria um artigo sobre o dito cujo fenómeno, a sair na revista Sábado brevemente, o qual aconselho a todos para uma leitura mais resumida, menos pessoal e mais bem escrita. (Mais resumida com certeza, menos pessoal também é certo, porque se me pusesse a descrever os meus problemas urinários era logo despedido, agora mais bem escrita é que já tenho as minhas dúvidas que a dra está uma espadachim da pena capaz de fazer Cervantes tremer como varas verdes.)


Estava especada há uns bons 15 minutos, a 100 metros daquela parede branca rasgada por enormes fendas azul-claro em toda a sua extensão. A qualquer momento poderia soltar-se um pedaço e, de câmara em punho, eu não iria perder o espectáculo. De repente o Glaciar rangeu num estrondoso gemido que termina como o som de um trovão, como que a chorar a pequena parte que dele caiu logo em seguida sobre o lago (Eu não disse! Esta mulher enganou-se na carreira, devia ser poetisa a tempo inteiro!!!) Formou-se uma onda gigante com a queda do gelo e minutos depois o lago recuperou a sua tranquilidade. Só aí voltei a mim, ainda meia pasmada e sorriso estampado na cara, até me aperceber que com a emoção mantivera a câmara desligada! Insultei-me a mim própria e teria maldito o meu nome nos próximos meses, não fosse o glaciar brindar-nos com mais uns quantos dos seus gritos deploráveis e dar-me essas segundas e terceiras oportunidades de gravar os acontecimentos.


Presenteados pela Natureza, todos estávamos contentes no final do dia, reunidos à volta duma mesa a ver as fotos do glaciar, enquanto esperávamos o “giso de lentillas” do Marcelo. O Marcelo tem 38 anos e há 10 que é instrutor de parapente, vivendo de voar por todo o mundo (não é apenas disso que o jovem faz a vida, mas cheira-me que a ingénua da inezinha não acredita que o Marcelo era dealer!) O Pablo terá uns 45 anos que mantém em segredo e está na Argentina há mais de um ano, com algumas passagens nas fronteiras com o Chile e o Uruguai, uma vez que o visto de turista só permite três meses consecutivos por estadia. Conheceram-se há um ano em Mar del Plata e pela afinidade do parapente e nenhuma outra, puseram-se à estrada, mais a pobre da Fanny que os ature. A Fanny é uma miúda de 33 anos com uma história anterior atribulada, 10 irmãos, trabalhadora desde os 14, um casamento de 4 anos e uma reviravolta na sua pacata vida de empregada doméstica pobre do Mar del Plata, para passar a ser uma dona de casa radical, que voa de parapente e viaja numa Bambi, mas pobre na mesma e com o senão de aturar as luas das duas criancinhas mimadas que a financiam! O Paolo é divertido como um italiano, civilizado e obsessivo como um suíço e casmurro como um turco. Esta última qualidade leva-me a autocorrigir-me, sendo que é mais uma afinidade entre o Paolo e o Marcelo, o qual, agora sim, sem mais nada em comum, é um tipo desleixado, impreciso como os Argentinos, vigarista à tuga e bon vivan à brasileiro. Fala português, capacidade que adquiriu em Fortaleza, onde viveu uma temporada. O Paolo diz que português parece russo e considera-se incapaz de alguma vez entender essa língua. O Marcelo prefere carne, o Paolo mil vezes peixe. O Marcelo acelera, o Paolo trava. O Paolo canta, gravou um cd no passado, o Marcelo desencanta, graciosamente desafinado. O Paolo abre a porta às senhoras, o Marcelo vai de mãos a abanar enquanto a Fanny carrega 8kg de mochila. O Marcelo muda o pneu furado, o Paolo liga para o reboque. Enfim, já chega.

Estávamos junto ao Lago Argentino, numa casa que de madeira aquecida por uma salamandra arcaica. Emprestara-a o Mariano ao casal amigo, um clube desportivo onde aluga patins de gelo durante o Inverno, quando o lago Argentino fica gelado, e onde está o rocódromo dos escaladores de El Calafate, que fez as nossas delícias nos tempos mortos! A Flu também adorou a casa, sobretudo os colchões que servem para amparar as quedas durante os treinos de escalada e que para ela eram alvo de destruição e palco de cambalhotas. Foi também nesses colchões que a pobrezita se descobriu alérgica ao pó, surpreendida por uma sucessão de espirros, tal e qual a sua mamã, num verdadeiro ataque de rinite alérgica (Foi também no dito colchão que decidiu fazer um xixi do tamanho do Lago Argentino, mas isso não é para contar!)


Jantámos o tal guisado, deliciosamente puxado pela pimenta, depois cantámos acompanhados pelos milhares de cds de karaoke do Paolo (não imaginam o pesadelo que é ter um italiano de meia idade a cantar Karaokes aos altos berros com aquele sotaque tipicamente napolitano. Estive à beira de lhe pendurar uma corda à volta do pescoço e atirá-lo ao lago em frente) e por fim fomos dormir.

Marcelo e Fanny acampados dentro de casa, Paolo na Bambi, munida de “calefacion” e nós na kombosa (Não chames “Kombosa” à Kombi linda ou vais a pé até ao Equador!!!) gelada, arca frigorífica mal regulada que quase congelámos debaixo das roupas e dos sacos-cama, quase sentíamos o vento que cortava lá fora, e dormimos tão mal, que só um dia em cheio como o que se seguiria poderia compensar tal desventura.



Glossário
“acantillado” – falésia;
“empeçamos” – começámos;
“ruta” – estrada;
“calefacion” – aquecimento;

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Querida Inês,
As tuas crónicas de viagem são uma delícia! Adoro ler-te, quase(!) que me imagino nessas maravilhosas terras da América do Sul.
Beijos para ti, para o Fred e para a Flu.
Mena

terça-feira, maio 02, 2006 3:05:00 da tarde  

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