PATAGÓNIA - RUTA 40 - 9 a 11 de Abril 2006 - EL CALAFATE - BAJO CARACOLES

Assim que nos afastámos da cidade, contornando o extremo leste do Lago Argentino, apresentámo-nos à falada estrada que atravessa a Argentina de norte a sul, paralela aos Andes, afamada por troços de terra, de 1000km, que atravessam uma Patagónia de ninguém. Conhecemo-la bem, à Ruta 40, a forte personalidade e as suas manhas. Concluímos que é uma estrada possessiva e que tem um acordo qualquer com as nuvens e com o sol.

El Chalten é uma vila rodeada por montanhas importantes, como o Fitz Roy, onde pretendíamos passar uns dias a fazer caminhadas sob o cenário maravilhoso da alta montanha.




Parámos em Três Lagos, um pequeno “pueblo” isolado do mundo, a 3km da estrada principal. O sol resolveu voltar no fim do dia, a chuva foi-se como veio, repentinamente, e eu senti o murmúrio sorridente e malicioso vindo da ruta 40, segura que voltaríamos para os seus longos braços incertos, “boa noite e até amanhã”.
Três Lagos parecia deserta. Demos três voltas aos dois quarteirões que constituem a povoação e não encontrámos nenhum restaurante até que o senhor da padaria nos apontou para uma casa com um letreiro meio apagado pelo pó: “minutas”. Era a casa onde vivia a senhora que nos cozinhou as duas “milanesas” e dos seus dois filhos mais novos, um rapaz de 19 e uma menina de 14 anos que pôs e levantou a mesa, e que apesar do isolamento da sua aldeia era uma miúda espevitada e castiça, que espreitava para o mundo através de duas únicas janelas: a escola e a televisão.

Saímos de Três Lagos pela manhã e começamos a odisseia pela 40 que, agora de “ripio”, nos saudou com uma nuvem de terra que o vento levantou. Não chovia mas o céu não era do mesmo azul nem o sol tinha a mesma pujança das manhãs em El Calafate.
Nos primeiros cem quilómetros andámos perdidos em curvas e contracurvas, rodeados de montes áridos sem sinal de vida além da pampa seca coberta por uma camada de pó que a torna cinzenta e sufocada. Depois a estrada amansou e ao final da manhã sentíamos uma plenitude inexplicável, na pureza do ar que inspirávamos e expirávamos, no tempo quase parado e no espaço infinito, de quase nada, mas apenas nosso e de mais ninguém.
De vez em quando aparece algo que muda o cenário, um lago, um cume branco ao fundo, um milhafre à caça, um coelho desvairado. Passámos pelo Lago Cardial e por uma aldeia disfarçada pela terra que cobre todos os telhados. Chamava-se La Primera Argentina.
Depois foram quase duzentos quilómetros de dejavú até à povoação seguinte. Cozemos meio quilo de esparguete o qual comemos com um pedaço de carne de cavalo assada que nos ofereceram das sobras do almoço do “parador”, montado numa das três ou quatro casas de Tamel Aike.
Seguimos caminho, de barriga cheia e planos para chegarmos a Perito Moreno, uma cidade por onde passam outras estradas além da 40, e onde teríamos uma maior liberdade de escolha. Íamos a estudar os mapas e ao nosso lado um riozinho acompanhava a estrada. Mais à frente o Rio Chico entrou no Srobel, mais um lago que refresca a monotonia da paisagem e nos tirou os olhos do mapa. Reparámos então que as nuvens estavam pintadas dum cinzento-escuro e pesado e pouco depois começou a chover. A estrada não tardou a ficar empapada e demorámos duas horas para fazer os 70km até à próxima aldeia, derrapando sobre a lama de tal forma que quase nos despistávamos e a sorte é não haverem árvores nem muros por ali. A páginas tantas vimos um tipo em apuros, numa mota que de tão coberta de lama deixava adivinhar uns quantos tombos.
Finalmente respiramos fundo, chegámos a Bajo Caracoles.
Bajo Caracoles é uma aldeia do género das anteriores, meia dúzia de casas cor de terra, isolada de tudo, com a diferença de ter um posto de gasolina. O dono do posto é o dono do único restaurante e da única pousada da aldeola. É um senhor antipático. Perguntámos-lhe se a estrada para norte continuava assim má e ele respondeu-nos que ficava ainda pior, que tínhamos de esperar que a estrada secasse. Podia estar a puxar a brasa à sua sardinha, angariando dois hóspedes para o seu “hostal” provavelmente vazio, mas se nessa noite lhe sairia a sorte grande não seria connosco. Decidimos ficar por ali, pelo sim pelo não, mas dormiríamos na Kombi.
Estávamos sentados no restaurante, rodeados de grunhos, mas abrigados da chuva e do frio lá de fora, com um café quentinho na mão. Nisto entra um jovem coberto de lama dos pés à cabeça, mas com uma expressão amável e uns olhos azuis que sobressaíam da lama denunciando a sua condição de turista. Perguntou num espanhol esforçado se havia quartos livres e o bruto do dono respondeu-lhe grosseiramente que ele nunca entraria num quarto naquele estado. Felizmente o gringo não entendeu patavina. Fizemos de intermediários na conversação e passado meia hora tínhamos na nossa mesa um amigo australiano de banho tomado e cerveja em punho. Chamava-se Phill e era ele quem conduzia a mota que ultrapassáramos no meio da lama. Já tinha descido desde Santiago do Chile até Ushuaia pela costa atlântica e agora aventurara-se a subir pela 40. A noite e a conversa iam no início quando entrou um casal dos seus quarentas porta adentro. Kath e Nic, também australianos, vinham de El Chalten e quase tinham atolado a sua carrinha 4x4. Ainda nem tínhamos terminado as apresentações quando entraram mais três pessoas, que seriam os últimos, os que fecharam um quórum de 8 para o jantar. Anne-Sophie, francesa, trinta e picos, Andy, americano, 31, e Tibor, alemão, cinquentas, todos vivem na Escócia e são geólogos. Estavam por aquelas bandas em trabalho e pretendiam fazer daquele lugar uma base, para estudarem as rochas da região da Cueva De Las Manos, uma gruta das proximidades, famosa por suas pinturas rupestres.
(Tibor e Anne-So, a apanharem pedras, e segundo ela, ainda a sorrirem pela manhã, que mais ao fim da tarde as pedras já serviam como armas de arremesso!)
(Andy, a quem mais tarde passaríamos a chamar de Little Prince, embora aqui não sobressaiam as semelhanças..)
O dono do estabelecimento, que deveria estar satisfeitíssimo com a enchorrada de clientes que chegava àquele fim do mundo, continuava com a sua tromba número um, falando com ar de frete ou de por favor.
Ao sabor dos vinhos argentinos que o Andy desencantou no meio das toneladas de amostras de calhaus que enchiam o porta-bagagens da carrinha e ao som duma mescla de sotaques de inglês, desde o australiano, em maior número, ao mais complicado e engraçado – o do, obviamente alemão, Tibor, partilhámos peripécias de viagens e cascámos o mais possível no antipático mor. Uma noite de pândega.
